Papel e atuação da Polícia militar são questionados pela sociedade e estudiosos

Larissa Bortoni e Nelson Oliveira | 26/11/2013, 19h35

O artigo 144 da Constituição Federal regulamenta o funcionamento da segurança pública no Brasil. Prevê quais são os tipos de polícias e as funções de cada uma. À Polícia Militar cabem as tarefas de fazer o policiamento ostensivo e preservar a ordem pública. À Polícia Civil cabem as investigações de crimes e o cumprimento de ordens judiciais no âmbito local. A Polícia Federal atua também como polícia judiciária e na investigação de crimes, só que contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas. a PF cuida ainda de outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme.

As PMs – assim como os policiais civis, bombeiros militares, forças auxiliares e reservas do Exército – estão subordinadas aos governos dos estados e do Distrito Federal. Isso levou ao desenvolvimento de 27 realidades distintas para a corporação. No entanto, há problemas em comum a todas elas, como mostra a edição de 2013 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, editado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com apoio da Open Society Foundations.

Uma das dificuldades enfrentadas pela Polícia Militar está ligada justamente ao fato de ser militar. No plano de contato com a sociedade, tem sido criticada por atuar como se estivesse numa guerra - com excessiva força e pouca capacidade de diálogo e entendimento. No plano interno, o Código Militar obriga seus integrantes a uma severa disciplina, capaz até de levar à prisão um policial que chegue atrasado ao serviço ou questione ordens de seus superiores. Há na base da PM um grande contingente que também se ressente por não ter direito de organização e greve.

As manifestações de junho popularizaram a tese da desmilitarização da PM. Mesmo vendo essa reivindicação com simpatia, estudiosos e envolvidos no debate pedem cautela aos que acham que a desmilitarizar simplesmente resolverá os problemas da segurança pública.

- A desmilitarização só fará sentido com a criação de uma polícia de ciclo completo, encarregada da prevenção, policiamento e investigação de crimes - afirma o presidente do Sindicato dos Agentes e Escrivães da Polícia Federal do DF, Flávio Werneck.

Remuneração

Outra dificuldade é a salarial, o que é levado em conta nas análises da possibilidade de fusão entre a PM e a Civil . De acordo com informações colhidas por Luis Flavio Sapori, que integra o Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordena o Centro de Pesquisas em Segurança Pública (Cepesp) da PUC Minas, os salários dos policiais civis são bem mais altos do que os dos militares. Enquanto um delegado em início de carreira recebe cerca de R$ 10,5 mil mensais, um tenente da PM ganha aproximadamente R$ 6,5 mil.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública apresenta um quadro em que compara as remunerações dos policiais civis e os militares. No caso de agentes da Polícia Civil, o Distrito Federal é a unidade da Federação com os melhores salários – R$ 7,5 iniciais. O Rio Grande do Sul é o estado que pior remunera esses profissionais – R$ 1,8 mil. Enquanto isso, um soldado da PM do Distrito Federal recebe R$ 4,1 mil. No Rio Grande do Sul o soldo é de 1,3 mil.

Para Sapori, essa diferença nos contracheques, por uma série de razões, compromete a eficiência no controle da criminalidade. “As demandas corporativas das carreiras policiais acabam se impondo sobre os governos, criando muitas desigualdades nas remunerações entre as polícias como também no interior das próprias polícias. Os conflitos tendem a exacerbar”, afirma o pesquisador.

A baixa remuneração também leva os policiais militares e procurar outras fontes de renda – os chamados bicos. Muitos atuam na segurança privada. Em texto publicado em 25 de setembro no jornal Folha de S. Paulo, o analista criminal Guaracy Mingardi conclui que os bicos e os pequenos salários contribuem para a ação violenta das PMs quando estão de folga. Segundo ele, não é novidade a participação de policias militares em tiroteios. “Um dos motivos é que a maioria atua como segurança privada no horário em que deveria descansar. Outro são os baixos salários, que os obrigam a morar em locais inseguros”, diz.

O analista criminal menciona outra informação compartilhada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Segundo Guaracy, “o número de pessoas mortas por policiais em serviço, só em São Paulo, é bem maior do que a totalidade de ocorrências do mesmo tipo em todo os Estados Unidos”.  De acordo com o anuário, no ano passado 1.890 pessoas foram mortas em confrontos com polícias civis e militares no Brasil. Nos Estados Unidos, também em 2012, foram 410 mortos; na República Dominicana, 268 mortos; e na África do Sul, 706 pessoas foram assassinadas por policiais. Os estados de São Paulo, com 563 mortes, e Rio de Janeiro com 415 mortes, lideram as ocorrências no Brasil, sempre sob a designação de "autos de resistência".

Amarildo

O Rio, aliás, foi o palco de um caso emblemático de violência policial, que vitimou o pedreiro Amarildo, morador da Favela da Rocinha. Amarildo Dias de Souza está desaparecido desde 14 de julho, depois de ter sido detido, na porta de casa, por policiais militares que atuavam na sede da Unidade de Polícia Pacificadora da comunidade. O pai de seis filhos e marido de Elizabeth Gomes da Silva nunca mais apareceu, nem o corpo dele foi encontrado. A história ganhou repercussão e uma enorme campanha nas redes sociais - “Onde está o Amarildo?”, com o apoio de inúmeros movimentos, como as Mães de Maio e da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência.

O desfecho do caso confirmou a participação da PM no assassinato do pedreiro, inicialmente detido para averiguações por suspeita de envolvimento no tráfico de drogas. Vinte e cinco policiais militares, incluindo o comandante da UPP da Rocinha, foram indiciados pelo assassinato de Amarildo.

Episódios como esse podem responder por que a polícia é tão mal avaliada pela população. Segundo o Índice de Confiança na Justiça Brasileira, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a polícia é a terceira instituição menos confiável. Entre os brasileiros, 70,1% não confiam na polícia. A instituição perde apenas para o Congresso Nacional e os partidos políticos. Nos Estados Unidos, de acordo com o Instituto Gallup, 12% da população não confiam na polícia. No Reino Unido uma pesquisa da BBC apontou que 82% dos ingleses consideram a polícia confiável.

Com as próprias mãos

Ao analisar esses dados, o professor adjunto da Linha de Pesquisa em Estudos Organizacionais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV, Rafael Alcadipani, aponta os riscos e o que leva a essa desconfiança do brasileiro com a instituição encarregada de cuidar da segurança pública: ao se sentir inseguro, o cidadão evita procurar as autoridades policiais para abrir boletim de ocorrência, o que pode acabar em justiça feita com as próprias mãos. “Além disso, a baixa confiança na polícia, combinada à desconfiança nas instituições da Justiça, eleva a percepção de impunidade e de que o crime compensa”, afirma Alcadipani.

No entender do professor da FGV, a baixa taxa de resolução dos crimes é um dos motivos da descrença em relação à polícia. Outro é a ineficiência no atendimento ao cidadão, que por muitas vezes, passa horas para registrar uma ocorrência - o policial que prende um criminoso ou constata um crime não é o mesmo que o registra e, posteriormente, o investiga.

“Para piorar o quadro, há a imagem de violência que está atrelada ao aparato policial, principalmente o militar. No imaginário da população, polícia ainda é comumente temida e vista como  fonte de injustiças”, diz estudioso. Ele lamenta essa situação e a considera bastante grave, especialmente porque  a polícia é fundamental para qualquer democracia. O descrédito dos cidadãos é, na opinião de Alcadipani uma evidência “de que o modelo de segurança pública brasileiro precisa de reformas urgentes, tornando-as instituições efetivamente transparentes e garantidoras de direitos”.

Além de matar muito, o policial brasileiro morre muito em serviço. Apesar da sonegação ou mau registro de informações, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública registra 901 óbitos de policiais em serviço entre 2000 e 2012. Do total, 22,4% aconteceram nos últimos três anos. Fora de serviço, no mesmo período, foram mortos 802 PMs, sendo que 66,7% desses entre 2010 e 2012.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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