Comissão especial busca regras que acabem com ‘guerra’ entre estados

Da Redação | 28/05/2012, 19h50

Nos últimos meses, os brasileiros atentos ao noticiário político e econômico vêm sendo bombardeados por expressões técnicas tão estranhas ao vocabulário usual como eram há duas décadas a enigmática ‘inflação inercial’. O que desafia o senso comum atualmente pode tanto ser a ‘guerra fiscal’ e o ‘pacto federativo’ quanto as siglas FPE e FPM.

A inflação inercial, anteriormente batizada pelo inspirado adjetivo de ‘galopante’, assustava pela capacidade de corroer salários e ameaçar a segurança econômica do país. A guerra fiscal, embora não tenha potencial destrutivo tão grande no curto e no médio prazos, é o tipo de disputa que diminui a eficiência econômica do país como todo, porque feita num contexto em que cada um cria suas próprias regras no que diz respeito à cobrança de impostos.

Para atrair investimentos, um estado pode favorecer empresas com a redução e até a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), por exemplo. Não raro, esse movimento é imitado por outros estados e potencializado pela oferta de terrenos públicos destinados a abrigar de pequenas fábricas a montadoras de automóveis.

A chamada guerra fiscal já existia no tempo da inflação alta, mas diante da corrosão diária do valor da moeda, não era algo que chamasse tanto a atenção. Nos últimos anos, a disputa se ampliou para a seara dos royalties do petróleo, que colocou de um lado os chamados ‘estados produtores’ e aqueles onde não há extração. E é atiçada ainda pelos anseios de cada ente em relação ao bolo dos impostos em geral, distribuídos por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), siglas antigas, mas cujo cipoal de regras é de difícil entendimento. Muitos têm até recorrido à Justiça para garantir a fatia que consideram merecida.

Outro ingrediente explosivo dessas ‘relações esgarçadas’, no dizer do próprio presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), é a dívida dos estados com a União, renegociadas justamente na sequência da estabilização monetária, mas com base em taxas de juros hoje consideradas absurdas, gerando reação mesmo entre parlamentares que apoiam o governo, a exemplo da vice-presidente do Senado, Marta Suplicy (PT-SP).

É por essa razão que líderes políticos de diversos partidos, incluindo Sarney, têm chamado a atenção para o estremecimento das relações dentro da Federação: estados em conflito com estados, estados em conflito com a União.

A contenda em torno desse dinheiro é legítima. Afinal, sem ele, não se constroem hospitais, escolas, estradas. O problema é que, nas palavras do advogado tributarista Ives Gandra Martins, um dos estudiosos da questão, o Brasil hoje é palco de uma “luta fratricida”, ou seja, na qual irmão mata irmão.

Ainda que possamos amenizar as cores dramáticas pintadas por Ives Gandra, o fato é que ninguém parece enxergar um quadro em que um estado ou a União deixe de perder para que outro ganhe.

Sendo a Casa da Federação, já que os senadores são eleitos para defender os interesses dos estados, o Senado tornou-se o principal cenário dessa controvérsia, razão pela qual tem buscado acelerar o exame de projetos a respeito do assunto. Um deles foi o que criou novas regras destinadas a repartir o ICMS sobre comércio eletrônico.

Uma solução do tipo sistêmica, entretanto, depende de arcabouço jurídico complexo – até porque o atual modelo de repartição do FPE expira em dezembro, de acordo com decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Eis a razão pela qual Sarney pediu que um grupo de 14 especialistas de renome, como Nelson Jobim (ex-presidente do Supremo Tribunal Federal), Everardo Maciel (ex-secretário da Receita Federal), Adib Jatene (ex-ministro da Saúde) e o próprio Ives Gandra Martins trabalhem num projeto capaz de juntar todas as pontas que se soltaram do pacto federativo – o acordo de repartição da renda nacional entre os entes da Federação.

Para que os quatro pontos de discórdia sejam solucionados, é preciso que o Congresso Nacional aprove novas leis. A ideia do Senado é alicerçar-se nas sugestões que serão apresentadas por essa comissão de especialistas e elaborar os projetos de lei necessários.

Nenhum desses temas é novo no Congresso. Não faltam projetos que proponham mudanças nas regras do FPE, das dívidas estaduais, do ICMS e dos royalties do petróleo. Eles, porém, não equacionariam os problemas. Por terem objetivos muito específicos, as propostas em tramitação no Congresso não levam em conta o amplo universo do pacto federativo.

O Senado optou por montar uma comissão de especialistas porque crê que a melhor solução só será encontrada se os quatro pontos forem discutidos ao mesmo tempo, e não um a um.

Exemplo: graças à visão global que tem da situação, a comissão poderá sugerir que um estado perca royalties do petróleo e, como compensação, ganhe uma fatia maior do Fundo de Participação.

— Quando tratamos os temas individualmente, acabamos criando ganhadores e perdedores. Ninguém quer isso. Quando tratamos dos temas em conjunto, conseguimos fazer compensações cruzadas, mitigar prejuízos — explica Everardo Maciel.

As novas regras para o ICMS sobre vendas na internet foram aprovadas no dia 24 de abril pelo Plenário do Senado e valerão a partir de 2013. Mas isso não impede que, no novo arranjo federativo, os especialistas sugiram outras regras, que substituam as recém-fixadas.

Quebra-cabeça

Um pacto federativo é usualmente baseado na meta de redução das desigualdades regionais. Os recursos, por isso, não podem ser distribuído por igual, sob o risco de prejudicar as regiões mais carentes.

Essa demanda torna o quebra-cabeça especialmente complexo e até paradoxal: a comissão terá de propor um arranjo no qual os estados carentes recebam mais dinheiro e, ao mesmo tempo, os ricos não percam. O que se dá como certo é que em certas situações a União terá de abrir mão de parte de seus recursos em favor dos estados, para anular-lhes (ou ao menos reduzir-lhes) eventuais perdas.

A opção por um projeto elaborado por “notáveis” tem uma segunda motivação: a de que os projetos de lei sejam redigidos sobre um alicerce o mais técnico possível, de modo a perseguir um ideal de neutralidade. Quando um senador ou deputado redige um projeto, é natural que favoreça seu estado.

Gandra Martins resume:

— Não temos compromisso com nenhum lado. O que buscamos é a pacificação.

Reuniões fechadas

Por decisão da própria comissão do Senado que busca um novo pacto federativo, todas as reuniões são realizadas a portas fechadas, o que se deu na manhã de segunda-feira (28).

— Não sendo públicas, nossas reuniões, ninguém se sentirá pressionado a marcar posição — explica Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal.

A comissão começou a trabalhar em abril e tem até meados de junho para apresentar suas propostas. O presidente do grupo é Nelson Jobim, que, além de presidente do STF, já foi ministro da Justiça e da Defesa. O relator é Everardo Maciel.

Outros nomes que já ocuparam altos cargos no governo também fazem parte da comissão: Adib Jatene, João Paulo dos Reis Velloso (ex-ministro do Planejamento), Bernard Appy (ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda) e Manoel Felipe Rêgo Brandão (ex-procurador-geral da Fazenda Nacional)

Completam a comissão os advogados Ives Gandra Martins, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Marrafon e Paulo de Barros Carvalho, os economistas Fernando Rezende e Sérgio Roberto Rios do Prado, o cientista político Bolívar Lamounier e o ex-reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) Michal Gartenkraut.

A comissão de especialistas foi criada pelo presidente do Senado por sugestão do senador Pedro Taques (PDT-MT).

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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