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Senado 200 anos: o olhar de quem serviu à Casa

Bárbara Gonçalves
Publicado em 17/5/2024

Ao longo dos 200 anos de criação do Senado, grandes personagens ajudaram a contar a história da Casa e da vida política do Brasil. Alguns deles foram testemunhas ou atores importantes do início dos trabalhos no Palácio do Congresso, logo após a transferência da capital federal, do Rio de Janeiro para Brasília. Além do olhar de quem estava na liderança de postos estratégicos, no centro dos debates, ou à frente das mobilizações e discursos em Plenário, a história pode ser contada também por aqueles que atuavam nos bastidores e de lá assistiam a momentos históricos: os servidores. 

O então presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, dá posse a João Goulart em 1961; e Rubem Patú, servidor do Senado Fotos: Arquivo Nacional; arquivo pessoal

A Agência Senado conversou com dois desses servidores que presenciaram a história na sua jornada diária. 

25 de agosto de 1961. O Brasil enfrentava uma de suas graves crises políticas. Enquanto o então presidente da República, Jânio Quadros, renunciava ao mandato, assumia como servidor do Senado o pernambucano, formado em direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Rubem Patú Trezena. 

Vindo do Rio de Janeiro, ele já chegava ao Congresso presenciando o senador Auro de Moura Andrade, então presidente da Casa, empossar interinamente na Presidência da República o então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. O deputado precisou assumir porque o vice-presidente, João Goulart, estava na China. 

Foi de dentro do Senado, mais precisamente no setor de Arquivo, que Rubem acompanhou toda a agitação política em que os congressistas aprovavam o parlamentarismo no país e, logo em seguida, empossavam João Goulart no cargo de presidente da República — para ele, um momento que despertou o interesse do seu grupo de colegas de trabalho, conhecido internamente como os “esquerdistas”. 

— A gente tinha um grupinho interessado, hoje seríamos chamados de esquerda, então a gente era mais conhecido por isso. Não éramos bem-vistos, porque a turma era tradicional, a cúpula (…). Foi uma época muito rica para o Brasil. A gente participava dessas coisas todas, íamos para o Plenário ouvir os grandes discursos, os grandes oradores que existiam naquele tempo. 

Senador Paulo Brossard em discurso e Plenário do Senado em 1967 Fotos: Arquivo do Senado

Mesmo atuando no Arquivo, Rubem Patú sempre dava um jeito de estar próximo aos plenários, tanto do Senado quanto da Câmara. Ele era atraído pela oratória dos ex-senadores, como Paulo Brossard e Jarbas Passarinho, e dos ex-deputados Pedro Aleixo, Almino Afonso e Doutel de Andrade. 

Os discursos desses parlamentares, segundo ele, inspiravam as agitações políticas e conversas do seu “grupinho” com os congressistas, até o momento em que foram silenciados com o novo rompimento institucional no país: o golpe de 1964, que atingiu fortemente a atuação parlamentar e os trabalhos dos servidores. 

— Aí depois veio 64, foi uma época ruim, perigosa. Andavam demitindo funcionários. E nós estávamos na lista sempre para sermos demitidos, eu e o grupinho. Aquele boato... Eles começaram a demitir os funcionários nos ministérios, na Câmara também houve demissões, mas Auro de Moura Andrade, ele era democrata e não aceitou acatar a lista. Então a gente se livrou [da demissão] e ficou calado, né? (…) Chegaram a dizer que nós seríamos presos. 

Ali começava o período da edição dos atos institucionais, de suspensão dos direitos políticos e de cassação de mandatos, como o do então senador por Goiás, Juscelino Kubitschek. E, ainda como efeito da repressão, o Congresso chegou a ser fechado quatro vezes. O AI-5, inclusive, foi publicado quando Rubem e sua esposa, Sônia Patú, retornavam de lua de mel, no Rio de Janeiro. Souberam do fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas dos estados pelo rádio, quando ainda estavam em Belo Horizonte. 

Fechamento do Congresso durante a ditadura e Juscelino Kubitschek, que teve o mandato de senador por GO cassado Fotos: Arquivo do Senado e Arquivo Público do DF

A medida motivou Rubem Patú e muitos outros funcionários da Casa a buscarem uma segunda ocupação profissional, já que os salários, nessa época, foram cortados em 50%.

— A gente ficou com o ordenado pela metade, né? Os vencimentos diminuíram muito. Aí eu fiz um concurso e fui ser professor de geografia do DF para poder complementar (…) Mas nós continuávamos indo para o Congresso, mas não tinha trabalho para a gente. Não tinha o que fazer (…) enquanto os parlamentares melhores foram todos cassados, uma coisa horrorosa. Na Câmara foi um arraso de deputados bons que foram cassados. Os melhores, para mim, dentro da minha lógica. Foi uma época ruim aquela. 

Mesmo após a reabertura do Congresso e a aprovação, em 1979, da Lei de Anistia, que permitiu a volta dos exilados ao país, Rubem recordou que ele e seus colegas se mantiveram por um bom tempo ainda preocupados. 

— A gente se recolheu com medo de perseguição política. Eu mesmo fiquei quieto. Não participei muito não — afirmou ao ser questionado sobre participação nas discussões durante a Constituinte. 

Do outro lado

Próxima ao edifício principal do Senado, mas um pouco distante do centro das discussões e perseguições que ocorriam durante o regime militar, estava Edith Moreira da Silva. A jovem goiana de Anápolis, com apenas 23 anos, começava sua jornada profissional no Senado. Iniciou a carreira no setor de telefonia, na atual Secretaria de Editoração e Publicações (SEEP), a Gráfica do Senado. 

Como seu local de trabalho ficava no prédio ao lado da avenida N2, e a informação não era tão acessível como nos dias de hoje, Dona Edith, como é conhecida, disse que não chegou a sentir na pele ações de repressão ou censura muito explícitas. Segundo ela, havia um clima mais sombrio no ambiente de trabalho e, por vezes, os próprios colegas orientavam a evitar muitas conversas ou fofocas para não serem interpretadas como uma possível conspiração contra o regime.  

Gráfica do Senado e Edith Moreira da Silva, já trabalhando na Formatação, do processo industrial gráfico, nos anos 80 Fotos: Adão/Agência Senado e Arquivo Pessoal

Dona Edith chegou ao Senado em 1972, atraída pela beleza dos prédios do Congresso, por já exercer uma militância política no seu estado e por, segundo ela, apreciar a boa oratória dos parlamentares. Ela foi admitida na Casa justamente no período considerado por historiadores como aquele com o mais cruel sistema repressor que o país já viveu. Os chamados anos de chumbo. 

— Era a ditadura, né? Éramos governados por um general, era militar. Na ditadura, ele dizia e a gente obedecia (…) mas [no ambiente de trabalho] era tranquilo. Assim, essa ditadura ninguém gosta, né? Ninguém gosta de eles falarem: é isso, é aquilo. Mas eu me lembro que a felicidade maior foi quando o general deixou, saiu (…) Era pesado, ninguém tinha o direito de falar muita coisa, não. Tinha que pensar no que ia falar. Não podia bater de frente, não. 

Mesmo com a memória pregando peça e insistindo em falhar, ela chegou a se recordar da liderança de Ulysses Guimarães e da sua popularidade entre os funcionários. 

— Aquela pessoinha, agora que lembrei do nome dele: Ulysses Guimarães. E aí nós ficamos sem ele. Mas foi uma luta, uma vitória, uma felicidade — disse ao relembrar da Constituinte e do período de redemocratização. 

Fachada da Gráfica do Senado e o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, com um exemplar da Constituição na sessão de promulgação, em 1988 Fotos: Arquivo do Senado

Imprimindo a história 

Nem mesmo o cenário de repressão foi capaz de desanimar Dona Edith. Ela queria aprender e crescer profissionalmente dentro da Casa. A temporada como telefonista foi meteórica. Ela testemunhou o processo de transição do sistema telefônico, quando as centrais de transferência física se tornavam desnecessárias em razão da evolução tecnológica. 

Cada vez mais ciente da proximidade do fim da carreira de telefonista para conexões de ramais, ela começou a buscar outros caminhos. Passou pela diretoria da Gráfica, aprendeu outros ensinamentos no setor de Arquivo, até se encontrar com aquilo que fez seus olhos brilharem: o processo industrial gráfico. 

Ainda antes da redemocratização, lá estava Dona Edith, aprendendo a paginação das impressões, algo totalmente novo para ela. 

Até a chegada da computação gráfica, os processos de impressão eram manuais e analógicos, com base em reprodução de fotografias, retoques manuais, uso de fotolitos (filmes), tintas, solventes e produtos químicos. Dona Edith trabalhava na organização do espelho da diagramação (distribuição dos textos e imagens em uma página) e no processo manual de paginação, no turno da noite. Ela esteve à frente da equipe que imprimiu todas as publicações da Assembleia Constituinte e as primeiras cópias da Carta Magna de 1988. 

— A minha felicidade maior foi no tempo da Constituinte. Nossa, maravilhosa. A gente trabalhava a noite toda ou trabalhava o dia todo, e o chefe dizia: vocês aguentam? E a gente respondia: aguenta. E era assim, porque você está trabalhando, você está contribuindo para a melhora do nosso país, né? Isso é muito importante. Isso foi maravilhoso. A gente ia para casa, tomava um banho e voltava. 

Placa comemorativa da Gráfica do Senado e Edith Moreira da Silva, servidora da Casa que atua no setor desde os anos 70 Fotos: Roque de Sá e Pillar Pedreira / Agência Senado

A Gráfica do Senado foi criada em 1963, pelo então presidente da Casa, Auro Moura Andrade, três anos após a inauguração do Congresso Nacional. Inicialmente foi utilizada para publicação dos discursos dos senadores e para agilizar a distribuição de cópias do orçamento que, assim como hoje, era encaminhado pelo presidente da República. Depois suas atribuições foram ampliadas, com a impressão dos jornais do Senado, da Câmara, do Congresso Nacional, outros tipos de impressos em parceria com a Imprensa Nacional e publicações como a Constituição. 

Hoje, aos 72 anos, Dona Edith é uma das servidoras mais antigas em atividade. Ela segue no setor de formatação, do processo industrial gráfico, sempre aprendendo, vez ou outra, ensinando. Ela continua se classificando como uma pessoa “esquentada” e que “não leva desaforo para casa”. Mas quando provocada a compartilhar a receita de tanta vitalidade no ambiente de trabalho, aconselhou que se preze “pelo bom andamento do serviço”. Expressão, inclusive, sempre usada pela servidora antes de iniciar qualquer feedback à chefia. 

— Essa é a receita. Ser transparente, cumprir com seu dever, chegar na sua hora, seu ponto estar lindo e maravilhoso. 

Horizonte

Já Rubem Patú deixou o Senado em 1989, tendo testemunhado as manifestações pela volta do Estado de direito, a campanha das “Diretas Já” e a rejeição à proposta de emenda à Constituição nº 5/83 (Emenda Constitucional Dante de Oliveira), em 1984, pelo Congresso Nacional. Ele também foi testemunha, em 1985, da eleição do senador Tancredo Neves pelo colégio eleitoral, e a ascensão de seu vice, o então senador José Sarney, à Presidência da República — época em que o servidor assumia como secretário do então senador, Ivandro Cunha Lima (PB). 

Em relação às transformações do Senado nesses 200 anos, Rubem Patú se mostrou saudosista em relação aos debates que ocorriam na tribuna, nos tempos “dos grandes oradores” e na discussão do que ele considera temáticas prioritárias para o país, como as questões sociais e educacionais. Disse sentir falta de mais “respeito” e “cultura” entre os representantes do Legislativo e lamentou o que classificou de “retrocesso danado” ao fazer referência aos temas de família e de costumes que, segundo ele, têm dominado a tribuna e as comissões.

— Aí fica nessa pauta de costume, de divórcio, de aborto, é uma bobagem (…) é claro que a mulher é dona do seu corpo e ela é quem deve dar palpite e não os machos. Estamos recuando nesse setor de costumes. 

O Arquivo do Senado preserva documentos históricos como a Lei Áurea, que aboliu a escravidão, assinada pela princesa Isabel em 1888 ; e Rubem Patú, servidor aposentado Arquivo do Senado e Barbara Gonçalves/Agência Senado

Já em relação ao quadro de profissionais da Casa, o servidor avaliou a renovação da equipe técnica por meio de concurso como um grande avanço. Na sua avaliação, a exigência elevou o nível da produção legislativa, na eficiência da assessoria aos senadores e na transparência dos serviços públicos à população em geral.

— O Senado passou a ser rigoroso com o concurso e veio uma turma de primeira. A assessoria do Senado é uma beleza hoje. A parte técnica de apoio constitucional, direito penal. O funcionalismo do Senado melhorou muito, porque naquela época não tinha concurso, então eram nomeadas pessoas que não tinham a menor capacidade para nada.  

Hoje, no auge da experiência que seus 92 anos lhe proporcionaram, observou que a satisfação do servidor deve estar sempre ancorada no propósito de “servir à Pátria”. 

— É a gente servir ao Senado, né? Cumprir os horários. É um parafusinho qualquer dentro de uma engrenagem, mas o Senado não funcionaria sem nós. 

8 de janeiro

Como guardiã da história, Dona Edith chorou ao ver as imagens da depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. Ela disse que jamais imaginou testemunhar aquelas cenas. 

— Eu só chorei, senti como se tivessem feito aquilo na minha casa. Incrível. Até hoje eu não acredito no que eu estava assistindo. 

Tendo visto grande parte dos momentos históricos do Senado, Dona Edith também já assume estar em processo de despedida. Prometeu que deve se aposentar ainda este ano. Os antigos colegas de trabalho não se encontram mais em atividade no Senado. Questionada se sofria pressão para deixar a Casa ou se sentia algum tipo de preconceito velado, como o etarismo, ela disse que chegou a ouvir certos comentários no passado, mas hoje, não mais. 

— Ah, eu sou o museu aqui do Senado, da Gráfica. Eu sou o museu. Me honro em ser o museu.


Reportagem: Bárbara Gonçalves 
Edição de texto: Herivelto Ferreira
Edição de imagens e multimídia: Pillar Pedreira
Imagem de capa: Edilson Rodrigues/Agência Senado 

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)