As novas cores da (des)igualdade racial

marcio-maturana | 04/08/2015, 23h14

O Estatuto daIgualdade Racial (Lei 12.288/2010) completou cinco anos no dia 20, em meio a polêmicas sobre os resultados do combate ao preconceito. Dois dias depois, foi noticiado que um médico carioca branco e de olhos verdes pela segunda vez se candidatou como cotista afrodescendente no concurso deste ano para diplomata do Itamaraty, cujas provas começaram no domingo (leia texto abaixo). E ainda reverberavam as agressões raciais feitas no Facebook, no início de julho, à jornalista Maria Júlia Coutinho, da TV Globo. A própria efetividade do estatuto gera opiniões muitas vezes contrárias entre os que lutam pela equiparação de direitos, tanto que a ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) vai pedir à Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado uma audiência pública para fazer um balanço desses cinco anos.

Com 65 artigos, o estatuto define diretrizes nas áreas da educação, cultura, lazer, saúde e trabalho, além da defesa de direitos das comunidades quilombolas e dos adeptos de religiões de matrizes africanas. O projeto tramitou durante sete anos no Congresso, terminando com rejeição integral de 4 artigos e incorporação de 11 emendas de redação. A primeira versão do texto, apresentada pelo senador Paulo Paim (PT-RS) em 2003, sofreu várias modificações tanto na Câmara quanto no Senado.

Foram eliminados artigos que previam cotas nas universidades federais e escolas técnicas públicas, reserva de 10% das vagas de cada partido ou coligação, mudança no Código Penal para dispensar a exigência de representação do ofendido para processamento de crimes contra a honra (injúria, calúnia ou difamação) de funcionário público em razão da etnia e permissão ao poder público para dar incentivos fiscais a empresas com mais de 20 empregados que mantivessem pelo menos 20% de trabalhadores negros.

— Entre o ideal e o possível, há uma grande distância. O Estatuto foi uma grande vitória. De forma pontual, ele sempre poderá ser aperfeiçoado. Mas foi um marco. Lembro uma frase do [então presidente] Lula no momento da sanção: “Alguns me disseram que, devido a algumas questões, eu não devia sancionar. Se eu fosse esperar, daqui a 100 anos eles estariam lamentando a oportunidade perdida” — disse Paim.

O frei David dos Santos, diretor-executivo da Educafro, entende que o governo “cedeu demais” na tramitação do projeto e que direitos posteriores, como cotas de 20% para negros nos concursos federais, foram conquistados sem ajuda do estatuto. Na opinião dele, nos últimos cinco anos, houve até retrocessos nas conquistas.

— Antes do estatuto estávamos avançando bem. Mas há cinco anos temos uma lei apenas autorizativa, em vez de determinativa. Os bancos tinham assinado um termo de ajuste de conduta para inclusão racial nas contratações. Após a assinatura do estatuto, eles abandonaram o plano — exemplificou.

Conquista do país

A ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Nilma Lino Gomes, tem uma visão diferente: ela defende que o estatuto seja visto como uma conquista do país. Em coro com o senador Paim, Nilma afirma que o fato de alguns pontos da proposta inicial terem sido suprimidos não invalida o teor e alcance do estatuto. A ministra cita medidas criadas com base nas disposições do estatuto: a Lei 12.990/2014, que instituiu 20% de cotas para negros no serviço público federal pelos próximos dez anos, e regras do Ministério do Trabalho criadas neste ano para incluir políticas de promoção da igualdade racial.

Ainda com base no estatuto, a secretaria criou a Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial — que registra, apura e acompanha casos de racismo e discriminação racial no país. Já passaram pela ouvidoria mais de 1,7 mil denúncias, número que cresce à medida que o serviço é conhecido pela sociedade (219 em 2011, 413 em 2012, 425 em 2013, 448 em 2014 e 270 até junho de 2015).

Paim acrescenta como avanços possibilitados pelo estatuto a questão da titularidade das terras dos quilombolas, o fortalecimento da luta pelo trabalho igual e salário igual, muitas conquistas nas áreas de segurança, saúde e educação para a população negra e a criação de novos instrumentos de combate ao racismo.

— Estatutos têm que ser apropriados pela população. O povo tem que conhecer cada vez mais e exigir que ele seja cumprido. Para isso, seria fundamental que governadores, prefeitos, vereadores e iniciativa civil imprimissem o estatuto e distribuíssem — sugeriu o senador.

Baixa representação

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, mais da metade da população brasileira não é branca: 53,1% (soma de quem se declara preto e pardo). Essa maioria, porém, não se repete no mundo acadêmico, por exemplo. Entre os 387,4 mil pós-graduandos brasileiros, há o desequilíbrio de 270,6 mil brancos (69,8%) e 112 mil negros (28,9%).

Na política, a representação da população negra também é desproporcional. Nenhum dos 27 senadores eleitos no ano passado se declarou negro. Apenas cinco se declararam pardos: Gladson Cameli (PP-AC), David Alcolumbre (DEM-AP), Romário (PSB-RJ), Fátima Bezerra (PTRN) e Telmário Mota (PDT-RR). Como esta foi a primeira eleição em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) inseriu a pergunta sobre a cor da pele na ficha de inscrição dos candidatos, não há registro oficial de como se consideram os 54 senadores eleitos em 2010.

Na Câmara, quase 80% dos deputados se declararam brancos. Dos 27 governadores eleitos em 2014, não há nenhum que tenha declarado ser negro à Justiça Eleitoral. No serviço público, o governo estima 30% de negros. Em alguns cargos de alta remuneração, como diplomatas e auditores, a presença dessa etnia é inferior a 10%.

— Nós, negros, estamos economicamente despossuídos e, consequentemente, com o poder político fragilizado. Estamos investindo na consciência do povo negro e o que não vier por amadurecimento do poder político branco virá por outros caminhos — afirmou frei David.

Dois dias após o aniversário do estatuto, a ONU lançou no Brasil a Década Internacional de Afrodescendentes, que vai de 2015 a 2024. As atividades brasileiras serão desenvolvidas sob a coordenação da Seppir, em parceria com o Ministério das Relações Exteriores. No lançamento, a ministra Nilma conclamou toda a sociedade para a continuidade da luta pela superação do racismo.

A Constituição define racismo como “crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”. O texto também apresenta como um dos objetivos fundamentais da República a promoção do “bem de todos, sem preconceito de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Neste momento de avanços pela igualdade racial, frei David diz que já esperava aumento de manifestações racistas, como as sofridas pela jornalista da TV Globo e as verificadas recentemente em jogos de futebol.

— Ninguém desamarra um pêndulo esperando que ele vá imediatamente parar de balançar. Após ser desamarrado, ele primeiro irá até o outro lado. Com o tempo e com o balanço, vai encontrar o equilíbrio.

Desde antes das cotas, bolsa busca garantir disputa justa

Ex-auxiliar de pedreiro, Jackson Luiz Lima Oliveira passou no concurso para diplomata em 2008. Ainda não havia a Lei de Cotas, mas ele teve direito a uma ação afirmativa que o Itamaraty oferece há 13 anos: o Programa Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia. São R$ 25 mil anuais, em dez parcelas mensais, para o candidato negro ou pardo custear despesas com professores, livros e cursos preparatórios. O benefício pode ser renovado até quatro vezes — desde que o candidato passe na seleção da bolsa em cada uma das renovações. Como diplomata, Oliveira ficou três anos trabalhando na África e hoje é assessor do diretor do Departamento de África.

— O programa é importante porque iguala os candidatos. Não conseguiu reverter ainda, porque é uma questão histórica, a deficiência da quantidade de negros no Itamaraty. Mas os dados mostram que 6% dos estudantes beneficiados no programa de bolsas foram aprovados. No público em geral, esse índice é de apenas 1% dos candidatos — afirmou Oliveira.

O diplomata calcula que, com a Lei de Cotas e o programa de bolsas, em 10 anos o Itamaraty terá 60 negros — o triplo do que entrou em 12 anos pelo programa de bolsas. Ele afirma que nunca entrou tanto negro em tão pouco tempo na diplomacia.

Durante dois anos, Oliveira foi entrevistador na segunda fase da seleção dos bolsistas, quando o candidato apresenta um plano de estudos e faz uma redação sobre a vivência como afrodescendente.

— A gente sugere que essa mesma metodologia, de entrevista e redação da experiência pessoal, seja usada pelo Itamaraty na diplomação de quem se declarou negro no concurso.

Para a verificação da autodeclaração de negro, Oliveira aponta como exemplo o recente Edital 32 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, publicado em 29 de junho, para o concurso de analista de planejamento e orçamento. Lá está prevista a instalação de uma comissão de verificação antes da segunda fase. Isso evita que um suposto fraudador só seja desmascarado no final do concurso, quando candidatos verdadeiramente negros já tenham sido eliminados. Oliveira sugere também que seja usada a mesma comissão para todos os candidatos, evitando subjetividade. O edital do Ministério do Planejamento, segundo ele, pode servir como padrão para toda a administração federal.

— Esse edital prevê que mesmo quem passar na ampla concorrência vai à banca e perde a vaga em caso de declaração fraudulenta. Isso cria constrangimentos para quem quer se aproveitar das cotas — diz.

O diplomata defende também que a decisão da comissão verificadora seja sempre unânime. Ele acredita que a unaminidade e a banca única, com os mecanismos de entrevista e redação sobre e experiência pessoal, podem evitar casos como o dos os gêmeos Alan e Alex Teixeira da Cunha, filhos de pai negro e mãe branca, que em 2007 se inscreveram pelo sistema de cotas raciais para o vestibular da UnB. Por meio de fotos, Alan foi considerado negro; Alex, não. Devido à repercussão, a UnB reviu a decisão e incluiu os dois como candidatos cotistas. No resultado final, porém, nenhum dos dois conseguiu a aprovação.

— Se todos os dez integrantes da banca não veem o candidato como negro, a sociedade não o vê como negro. O caso dos gêmeos na UnB não diz que o mecanismo de bancas verificadoras é falho, mas que pode haver subjetividade. Em relação a brancos pobres, a gente não vai tirar direito de um por causa do direito de outro. Por exemplo: começamos com 20% de cotas para negros na UnB e outras federais. Depois aumentamos para 50%, incluindo 30% alunos de escola públicas. Quando um médico branco de olhos verdes se declara pardo para pegar a vaga, não é questão econômica; é uma questão de desonestidade.

Itamaraty e Exército na mira do Ministério Público

Domingo começaram as provas do concurso do Itamaraty, também em meio a polêmicas sobre combate à desigualdade racial. Na quinta-feira, o Ministério das Relações Exteriores teve que explicar ao Ministério Público como é a checagem dos candidatos que se autodeclaram negros para se enquadrarem na cota de 20%. O Itamaraty respondeu que não detalhou no edital um mecanismo de verificação porque ele não é previsto na Lei 12.990/2014 e que checar as autodeclarações agora, na fase inicial, poderia tumultuar o concurso. A lei — que ainda não foi regulamentada — prevê eliminação caso se identifique declaração falsa, mas não detalha como isso deve ocorrer.

A resposta ainda está sendo analisada pela procuradora da República Ana Carolina Alves Araújo Roman, que nos próximos dias vai decidir que providência tomar. Na semana passada, ela entrou com uma ação para obrigar o Exército a reservar 20% de vagas para negros no concurso para formação de cadetes, com novo prazo de inscrições. O Exército havia alegado que não aplica a Lei de Cotas porque não considera servidores públicos os militares. Frei David disse que a Educafro vai propor um seminário ao Exército e à Aeronáutica.

No caso do Itamaraty, o questionamento da procuradora foi feito porque o médico carioca Mathias Abramovic, branco e de olhos verdes, mais uma vez se inscreveu no concurso como cotista. Ele se considera afrodescendente alegando ter uma bisavó paterna negra e avós maternos pardos. Em 2013, Abramovic passou na primeira e na segunda fases da seleção com uma média que só o levou adiante porque estava nas vagas reservadas a negros. Foi reprovado na terceira fase.

O concurso neste ano oferece 30 vagas, 6 delas para negros e pardos. São 5.271 candidatos na ampla concorrência e 671 para as vagas de afrodescendentes, além de 61 para as vagas reservadas a portadores de deficiência. O resultado final deve ser divulgado em dezembro, após quatro etapas, e o salário inicial é de R$ 15.005,26.

— Não podemos condenar trabalhos de fôlego como o estatuto e a Lei de Cotas por causa de algumas exceções. Quem tenta burlar a lei é que deve ser criticado e responder pelos atos! — afirmou Paim.

Estados e municípios têm incentivo para promover equidade

O Estatuto da Igualdade Racial determinou a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), com o objetivo de estender a política de promoção de equidade racial para todas as esferas de governo, incluvise municipais e estaduais.

Para fazer parte do Sinapir, o município ou estado precisa ter um órgão governamental e um conselho destinados à questão da igualdade racial. Isso é fundamental para tornar a questão uma política de Estado. Atualmente 17 municípios e 4 estados integram o sistema e diversos outros já iniciaram o processo de adesão.

Na sexta-feira, o Diário Oficial da União publicou uma portaria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial que prorroga até o dia 14 a entrega de propostas para seleção de projetos que contribuam para a implementação do Sinapir. Estados, municípios e consórcios públicos que ainda não inscreveram projetos terão mais duas semanas de prazo. A divulgação do resultado final da chamada pública acontecerá no dia 31. Serão destinados R$ 4.576.713 para financiamentos de projetos como aquisição de bens, capacitação, elaboração de planos de igualdade racial, criação e funcionamento de órgãos e conselhos, projetos de comunicação; ações voltadas para a saúde da população negra e de fomento a empreendimentos associativos de comunidades quilombolas; entre outros.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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