Na Revolução Federalista, em 1893, senadores chegaram a pegar em armas

Ricardo Westin | 03/08/2015, 12h23

Uma das histórias mais ensinadas nos colégios diz que a ruptura de 1889 ocorreu sem derramamento de sangue. De fato, a Proclamação da República, no Rio, foi um ato pacífico. Mas houve, sim, uma reação sangrenta ao sepultamento do Império. Ela se daria pouco tempo depois e a centenas de quilômetros da capital.

Foi a Revolução Federalista, a guerra civil que explodiu no Rio Grande do Sul em 1893 e mais tarde arrastou Santa Catarina e o Paraná. Os enfrentamentos se estenderam por dois anos e meio e terminaram com um saldo estimado de 10 mil cadáveres.

O acordo de paz, em 23 de agosto de 1895, completa 120 anos neste mês.

Para não perder o poder, os velhos barões do Império viraram a casaca em 1889 e conseguiram se transformar na nova elite da República. O Rio Grande do Sul foi exceção.

Na monarquia, o governo gaúcho esteve nas mãos dos fazendeiros. O último governador foi o estancieiro Gaspar da Silveira Martins, que era próximo de dom Pedro II. Na República, o poder foi tomado por intelectuais urbanos liderados pelo jornalista Júlio de Castilhos, governador gaúcho no final do século 19.

Uma das medidas de Castilhos foi impor uma Constituição estadual que concedia poderes quase ditatoriais ao governador. Esse foi o estopim para que Silveira Martins mobilizasse seus seguidores para derrubar o “tirano”.

Na Revolução Federalista, o estado ficou rachado entre os revolucionários (ou maragatos, grupo de Silveira Martins) e os legalistas (ou chimangos, grupo de Castilhos).

Os revolucionários, que se compunham basicamente de estancieiros e seus peões, estavam acostumados a matar ovelhas cortando-lhes o pescoço com um punhal e adaptaram essa cruel forma de execução à guerra — daí o apelido Guerra da Degola.

O conflito também rachou os senadores, como mostram documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília. Elizeu de Souza Martins (PI), em junho de 1893, discursou contra os legalistas:

— Não há outra Constituição ridícula como aquela.

No campo oposto, Manoel Victorino (BA) atacou:

— A República não pode ter maior adversário do que o senhor Gaspar da Silveira Martins, que está habituado a dominar desde o Império e não se sujeitará a estar em plano secundário na República.

Theodureto Souto (CE) adotou um tom conciliador:

— O Senado é o grande responsável pelo regime federal. Não lhe é permitido permanecer imóvel diante de situações como a do Rio Grande do Sul, teatro de uma revolução devastadora e em que se consomem milhares de vidas, milheiros de contos e o sentimento supremo da integridade da pátria.

Bate-boca

Dos senadores, dois pegaram em armas nos campos de batalha do Sul. Foram eles o legalista Pinheiro Machado (RS) e o revolucionário Eduardo Wandenkolk (DF).

Em maio de 1893, o Plenário discutia se daria ou não licença a Pinheiro Machado. Para Almeida Barreto (PB), a ausência do colega gaúcho naquele ano legislativo não deveria ser autorizada:

— Por mais que mereça o ilustre senador deixar de comparecer à presente sessão legislativa por achar-se de arma em punho, batendo-se em favor de um governo que tem feito derramar rios de sangue, não posso concorrer com meu voto para ser atendido semelhante pedido, que abre precedente prejudicial à gestão dos negócios públicos.

Aristides Lobo (DF) rebateu:

— Coloque-se o honrado senador na posição dele. Não estamos expostos às Mannlichers [tipo de rifle] e outras armas com que estão sendo fuzilados ele e seus companheiros. Faríamos uma injustiça recusando a licença.

O Senado concedeu a licença, e Pinheiro Machado, que já tinha no currículo a Guerra do Paraguai, comandou uma divisão legalista.

Embora não tenha ultrapassado os limites da Região Sul, a Revolução Federalista ganhou caráter nacional. Temendo que a guerra implodisse a frágil República, o presidente Floriano Peixoto enviou tropas em socorro do governador Castilhos. Os revolucionários, então, passaram a lutar pela queda também de Floriano.

O senador Eduardo Wandenkolk virou protagonista da guerra em 1893, quando foi preso na costa de Santa Catarina, num navio, dias após ter ajudado os revolucionários a atacar Porto Alegre. Ele era almirante e naquele momento também engrossava outra rebelião contra Floriano, a segunda Revolta da Armada (Armada era como se conhecia a Marinha).

Em agosto daquele ano, Floriano enviou uma mensagem ao Senado pedindo autorização para processar Wandenkolk por atentado “contra a estabilidade de um Poder constituído e a ordem pública”. Pela Constituição de 1891, senadores e deputados só poderiam ser levados aos tribunais mediante “prévia licença da sua Câmara”.

Após ouvir a mensagem, Coelho Rodrigues (PI) disse:

— Parece-me estar provado que o almirante, nosso colega muito distinto, praticou, se não todos, alguns dos fatos que lhe são arguidos. Esses fatos são de natureza grave. O Plenário do Senado autorizou o processo.

Acordo de paz

O problema de Wandenkolk não era com Castilhos, mas com Floriano. Em 1891, no lugar de convocar eleições após a renúncia do presidente Deodoro da Fonseca, como mandava a Constituição, o vice Floriano assumiu o poder na marra. O almirante Wandenkolk assinou um manifesto por eleições imediatas e, em resposta, foi reformado (aposentado) e preso.

O ódio de Wandenkolk por Floriano tinha mais um motivo. O almirante havia sido derrotado pelo marechal na disputa pela Vice-Presidência na eleição indireta de 1891.

Os revoltosos perderam o rumo em agosto de 1894, quando Gumercindo Saraiva, um de seus principais líderes, foi morto. Sem chance de vitória, eles aceitaram assinar o acordo de paz um ano depois, com a promessa de não serem punidos.

O Arquivo do Senado preserva o documento que Prudente de Morais, sucessor de Floriano, enviou ao Congresso anunciando por fim a paz. O senador Joaquim Catunda (CE) comemorou:

— Fez-se a paz e em condições tais que a República e a autoridade que a representa saíram ilesas. Fez-se também sem humilhação para os revoltosos, em termos honrosos e satisfatórios para todos.

Na realidade, os termos foram bem mais satisfatórios para os legalistas. A Constituição gaúcha não foi modificada, e Júlio de Castilhos se manteve no governo até 1898.

Em outubro, o Congresso aprovou o projeto de lei que concedia anistia aos revolucionários — incluindo Wandenkolk, que pôde voltar para a Marinha e para o Senado.

O historiador Rafael Sêga, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, explica:

— A versão de que a República foi imposta sem sangue foi criada pela classe dominante, que queria se legitimar. O golpe de 1889 pegou o país desprevenido e foram necessários três ou quatro anos para que as mágoas aflorassem e as elites do Império, alijadas do poder, reagissem. A Revolução Federalista abriu a porteira para uma série de conflitos cruentos, como Canudos e o Contestado. De pacífica, a história do Brasil não tem nada.

A seção arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado e o arquivo do Senado, é publicada na primeira segunda-feira de cada mês.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)