Comunidades tradicionais querem garantia de consulta prévia sobre medidas que afetem seus interesses

gorette-brandao | 17/10/2013, 17h05

Representantes das comunidades tradicionais e entidades engajadas na defesa de seus direitos cobram a plena aplicação no país da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais. Em audiência na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), nesta quinta-feira (17), os participantes destacaram principalmente o artigo que estabelece o direito da consulta prévia às comunidades sempre que houver previsão de medidas legislativas ou administrativas que possam afetar suas vidas.

O debate refletiu a preocupação com os grandes empreendimentos energéticos apontados como geradores de conflitos e impactos socioambientais em terras indígenas e quilombolas, entre eles a Usina de Belo Monte. Houve ainda críticas a autorizações públicas para pesquisas e exploração mineral, assim como a decretos e portarias do governo e também a projetos de leis que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado que seriam igualmente contrários aos princípios da Convenção 169.

A presidente da CDH, Ana Rita (PT-ES) – que propôs a audiência a pedido das próprias entidades –,  manifestou compromisso da comissão em zelar pelo respeito aos direitos dos povos das comunidades tradicionais. Segundo ela, isso envolve a garantia da realização das consultas nos termos da convenção da OIT, que foi aprovada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 2004, passando a integrar a legislação do país.

- A necessidade de consulta, infelizmente, ainda é um fazer de conta. É preciso efetivamente respeitar territórios, costumes, a cultura e a vida dos que vivem em comunidades tradicionais – disse Ana Rita.

Sujeitos de direitos

De acordo com Deborah Duprat, subprocuradora-Geral da República do Ministério Público Federal (MPF), a convenção surgiu como produto de longa luta pela afirmação dos direito das minorais tradicionais, assegurando a esses povos a condição de “sujeitos de direitos”. Ela condenou a ideia de que “tudo se pode fazer” nos territórios e domínios dessas comunidades, sem que elas possam se manifestar e reagir.

- Não tem como pensar numa sociedade plural, que tenha vários sujeitos de direitos, com essas populações mantidas na invisibilidade e sem voz na esfera pública – criticou.

Mesmo sendo signatário da Convenção, segundo Deborah, o Brasil nunca implementou as consultas e só começou a tratar do assunto depois de uma representação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) à OIT, que acabou definindo prazo para que o país regulamente e aplique o instrumento. Porém, ela observou que o mecanismo de consulta não pode ser apenas uma formalidade, mas gerar resultados.

- Esse é um processo absolutamente vinculante, no sentido de que sejam incorporadas todas as objeções ao projeto e, se vai impactar, tem que apresentar razão melhor ao óbice que foi levantado – defendeu a procuradora.

Thiago Almeida Garcia, da Secretaria Nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República, falou do andamento da regulamentação do mecanismo, trabalho iniciado em janeiro do ano passado, por meio de comitê interministerial que vem realizando audiências pelo país para colher sugestões e debater. Segundo ele, deve ser criado um protocolo que defina os “sujeitos de direitos” atendidos (além de índios, já houve o reconhecimento dos quilombolas), os princípios que irão orientar as consultas e as regras que digam como elas devem ser organizadas.

De acordo com Érika Yamada, que representou a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Convenção 169 inovou ao prever medidas para salvaguardar os usos e costumes, crenças, valores e território das populações tradicionais. Depois de reconhecer que o “coração” do texto está no mecanismo de consulta, ela salientou que deve ser garantida uma participação “livre e informada”, para a construção de posições que de fato levem em conta as demandas.

O bispo primaz da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Dom Maurício Andrade, representante do Fórum Ecumênico do Brasil (FEB), destacou a proximidade das igrejas com os movimentos sociais e defendeu novos paradigmas de desenvolvimento, em que os direitos humanos e sociais ganhem destaque. Segundo ele, o país precisa regulamentar a Convenção 169, dando um “passo concreto” no sentido de acolher a experiência dos povos tradicionais em seu ambiente e território.

Papel do Legislativo

Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), observou que o Poder Legislativo também está sujeito às regras da Convenção. Porém, conforme assinalou, por enquanto apenas o Poder Executivo discute o enquadramento de suas ações ao texto. Ele destacou diversos projetos de lei que representariam ameaças as comunidades tradicionais, como o projeto de um novo Código de Mineração, o PL 5.807/2013, que tramita na Câmara dos Deputados.

Buzatto destacou ainda o PLP 227/2012, também na Câmara, que aponta exceções ao direito exclusivo dos indígenas às suas terras tradicionais, além de duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC): a 215/2000, que transfere o poder de demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Congresso, além da PEC 38/1999, esta com origem no Senado, que estabelece como competência privativa da Casa a demarcação das terras indígenas.

- Por meio desses instrumentos se faz um ataque sistemático e violento aos direitos consignados aos indígenas, inclusive na Constituição Federal – disse Buzzato.

Na esfera do Executivo, foi mencionada a Portaria 303, da Advocacia Geral da União (AGU), que estendeu a todas as terras indígenas condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento que resultou no reconhecimento da demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol. Pelas condicionantes, por exemplo, empreendimentos como usinas hidrelétricas podem ser feitos sem consulta prévia aos índios. A procuradora Deborah Duprat lembrou que houve embargo contras as condicionantes e que o julgamento deve ocorrer na semana que vem. Por isso, sugeriu mobilização junto aos ministros do STF para tratar do tema.

Renato Tupiniquim, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), apontou retrocessos no governo Dilma. Ele questionou a informação  de que a aplicação da Portaria 303 está suspensa, afirmando que o Ministério da Justiça continua fazendo uso do instrumento. Também apontou crescente proximidade do governo com o agronegócio, avaliando que por isso novas demarcações não acontecem.

Um apelo pela união dos povos tradicionais na defesa de seus direitos foi feito por Arilson Ventura, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ele criticou principalmente os projetos em tramitação no Congresso, a seu ver instrumentos de “violação” dos direitos humanos dos quilombolas e indígenas.  Alexandre Conceição, da Via Campesina, falou da expulsão de camponeses de suas terras e do desrespeito aos pescadores artesanais. Depois, criticou a demora que houve na ratificação da Convenção 169 e, agora, na regulamentação da cláusula da consulta.

- O tempo para o capital, o governo e a Justiça é supersônico, mas quando é algo para os povos tradicionais e os sem-terra parece que ele não passa – comparou.

Lucimara Cavalcante, assessora da Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK/Brasil), que representa os povos ciganos, também participou da audiência.  Ela destacou que finalmente os ciganos compreenderam que precisam lutar por seus direitos, enfrentando longa história de perseguição e preconceito. Lucimara acrescentou que os ciganos querem o reconhecimento da condição de povo tradicional e a proteção da Convenção 169.

Deliberações

Ao final da reunião, a senadora Ana Rita se comprometeu em enviar para as demais comissões documento preparado pelo conjunto das entidades e que lhe foi entregue. Segundo ela, o objetivo é que esse material sirva de subsídio ao debate de proposições legislativas que preocupam os povos tradicionais. Ele também solicitou que as entidades preparem e enviem à comissão nota técnica a respeito da Convenção 169, que também pretende encaminhar às demais comissões.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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